Iniciativa do PMGZ de classificar touros em Decas e não mais em Tops divide opiniões e reeducação do consumidor de genética parece ser a melhor saída.
Por Carolina Rodrigues
A mudança na metodologia de classificação dos animais participantes do Programa de Melhoramento Genético do Zebu (PMGZ) tem gerado debates frequentes, que recrudesceram em agosto, durante a Expogenética, em Uberaba, MG, quando o programa divulgou seu primeiro sumário de touros listados por Deca (de 1 a 10) e não mais por percentil (1% a 99% superiores).
Na nova classificação, o grupo Deca 1 reúne os 10% de animais que mais se destacaram nas avaliações; o Deca 2 corresponde aos 11% a 20% melhores e assim sucessivamente, até se chegar à Deca 10, que inclui os 10% pior avaliados. Com essa medida, o PMGZ hierarquizou os touros por faixas amplas. O grupo Deca 1, por exemplo, inclui 300.000 animais, ou seja, 10% de um universo de quase 3 milhões de indivíduos incluídos na base de dados da entidade.
O que isso significa na prática? Segundo produtores ouvidos por DBO, foram colocados, na mesma “gaveta”, touros com diferenças significativas de desempenho, o que tem gerado confusões. “No mês passado, realizei um leilão de 400 touros e 95% do meu catálogo era Deca 1. O problema é que, dentro desse grupo, haviam indivíduos com índice (iABCZ) 7 e outros com índice 30, ou seja, animais totalmente diferentes e que, pelo novo sistema de classificação, são iguais”, argumenta João Guilherme, dono da Fazenda Água Fria, de Xinguara, PA, que mantém 4.000 matrizes em avaliação no PMGZ. “Como explicar isso para o meu comprador?”, questiona.
Segundo o produtor, a classificação por Deca nivelou os projetos de seleção, que perderam seu diferencial. “Todos fomos colocados na mesma cesta. Criadores que fazem um melhoramento genético consistente e gente que nunca fez seleção de fato”, queixa-se João Guilherme.
Erros técnicos
A medida foi anunciada pela Associação Brasileira de Criadores de Zebu (ABCZ) em fevereiro deste ano, após a entidade constatar – com base em dados coletados a campo em todo o Brasil – que a variabilidade genética da raça Nelore estava sob risco, devido ao uso de um número restrito de touros classificados como Top 0,1%. A solução encontrada, segundo Luiz Antônio Josahkian, superintendente técnico da ABCZ, foi optar pela Deca, visando destacar um leque mais amplo de linhagens e resgatar algumas alternativas genéticas que não estavam sendo utilizadas porque não alcançavam o seleto grupo dos 0,1%.
“O conceito contém erros técnicos graves. O maior deles é eleger, como 0,1%, touros com acurácia deste tamanhinho, que, na avaliação seguinte, se mostram ruins. O Top leva à supervalorização de animais e ao uso excessivo de uma genética muitas vezes inconsciente. Tecnicamente está errado e o uso comercial também está errado”, pontua Josahkian, acrescentando que, nos últimos anos, alguns problemas funcionais foram incorporados à raça justamente por ter-se dado ao “número” tamanha força comercial.
Gilberto Honório, da Guto Assessoria, que seleciona animais para produtores em 60 leilões Brasil afora, confirma esse prognóstico. No ano passado, ele descartou 6.000 touros prontos para a venda devido a problemas relacionados à funcionalidade e caracterização racial. “É terrível o criador ter de descartar 20% de uma safra tratada, pronta, por causa desse tipo de problema. Independentemente da classificação adotada pelo programa, precisamos repensar essa situação, para ver se estamos fazendo acasalamentos adequados e como podemos minimizar erros”, avalia Guto. O assessor se diz a favor do percentil como ferramenta de seleção, mas alerta que o desempenho não deve sobrepor características essenciais e inerentes à preservação da raça Nelore. “São defeitos adquiridos, ou seja, problemas que a raça não tinha e que foram introduzidos”, diz ele.
A favor do percentil
Argeu Silveira, diretor técnico do Programa Nelore Brasil, da ANCP (Associação Nacional de Criadores e Pesquisadores) pensa diferente. Para ele, alterar o sistema de classificação dos animais não garante isenção de tais defeitos. “O melhoramento consiste em usar os melhores e descartar os piores, inclusive em termos de funcionalidade. Essa é a regra universal de qualquer programa, mas o que descartar é decisão de cada técnico, cada criador”, salienta.
No Seminário da ANCP, realizado em maio, na cidade de Ribeirão Preto, SP, Silveira fez uma defesa pública do percentil, comparando dois touros: um Top 0,1% e outro Top 10%, que, no caso da Deca, teriam a mesma classificação. Considerando-se apenas uma característica (peso ao sobreano) o primeiro animal imprimia à progênie 32 kg a mais e o segundo, 16,67 kg. A diferença entre ambos era de 15,34 kg.
“Vamos considerar que o touro 0,1% trabalhou cinco anos, produzindo 30 filhos por ano e forneceu 150 filhos. Ao multiplicar esse número por 15,34 kg e considerando-se o valor médio de R$ 6 por quilo de PV, tem-se uma diferença, somente para peso ao sobreano, de R$ 13.806 do touro Top 0,1% para o 10%. Se eu agregar leite e outras características a essa conta, ela fica ainda mais interessante”, argumentou Silveira. Para ele, que já ministrou 50 cursos de acasalamentos dirigidos pelo País, não se deve preconizar o uso excessivo do Top 0,1%, nem menosprezar o TOP 10%, mas é importante utilizar percentis quando se precisa estimar claramente as diferenças econômicas de um touro para outro.
Sintonia fina
Ricardo Andrade, da Fazenda Vale do Boi, com sede em Araguaína, e participante do PMGZ desde 1975, concorda. Ele tem tido dificuldade processar as informações genéticas de seu rebanho e definir acasalamentos após a mudança de Top para Deca. “É difícil escolher animais dentro dessa enorme gaveta de 10 em 10. O valor da DEP está lá, mas não sei o que aquilo representa em relação ao grupo que o animal pertence. Qual a posição dele entre os 10% melhores? O percentil define melhor o ranqueamento do animal para determinada característica. É um preciosismo sim, mas necessário para quem faz seleção”, explica Andrade, que reivindicou mudanças à equipe técnica da ABCZ nos últimos meses. “Sei que existe uma corrida para se conseguir índices cada vez mais altos e não concordo com isso. Mas classificar os animais por Deca não vai reeducar o mercado, apenas criar confusões”, lamenta o criador.
Segundo Josahkian, a ABCZ está discutindo estratégias para minimizar esses problemas internamente, mas afirma que a Deca continuará sendo a ferramenta utilizada pelo PMGZ para se comunicar com o mercado. A seu ver, os produtores de genética não terão problemas, pois podem fazer análises detalhadas por DEPs isoladas ou em conjunto. Já o comprador de touros PO terá um universo mais amplo para escolha dos animais no mercado, com dimensionamento comercial adequado.
Para Ricardo Abreu, gerente de fomento do PMGZ, essa é a principal contribuição da Deca. “Trabalhei 21 anos ligado às centrais de inseminação e vi excelentes touros Top 2% não serem indicados, nem utilizados, em detrimento de touros Top 0,1% que não eram necessariamente os melhores para o rebanho em questão”, diz Abreu. “De 1.000 animais Nelore contratados pelas centrais, 200 fornecem 90% das 4 milhões de doses comercializadas atualmente. Agora. pergunto: e os 800 restantes? A busca frenética pelo Top 0,1% está levando o mercado a poucas opções de pedigree nas centrais, mola propulsora da genética para os diferentes criatórios por todo o País”, acrescenta.
Comunicação é fundamental
Top ou Deca são simplificações de índices genéticos, calculados com base em diferentes características de interesse econômico, como ganho de peso, precocidade, qualidade de carcaça etc, cujo peso na ponderação final é definido por cada programa de melhoramento. Fábio Dias, diretor de relações com o pecuarista da JBS, relembra as primeiras discussões sobre os índices há 20 anos, das quais participou efetivamente no início de sua carreira ainda voltada para o melhoramento genético.
Eles nasceram da necessidade de se ter regras claras e auditáveis para escolha dos 30% melhores animais da safra nos projetos de CEIP (Certificado Especial de Identificação e Produção), com preceito básico de comunicar ao criador o potencial genético de determinado animal em relação à sua base. Naquela época, lembra Dias, não se esperava tamanha absorção do conceito. “Se ele fez sucesso, é porque a comunicação com o produtor funcionou. E se alguém está vendendo melhor, é porque está se comunicando melhor. O sucesso do percentil tem feito, claro, o risco que ele causa”, opina Dias.
Para o zootecnista William Koury Filho, que lida diariamente com um universo estratificado de fazendas na empresa BrasilcomZ, “ao se comunicar com o mercado por meio de dados tão precisos quanto o percentil (Top 1%) ou o permiliar ( Top 0,1%), os programas disseminaram informações que precisam de interpretação técnica para ser corretamente utilizadas”.
Fábio Dias alerta: “A unidade de medida que você usa para vender as coisas deve estar correlacionada ao progresso obtido que se tem. Vender elefante em gramas não faz sentido. Uma coisa é escolher um touro para central, decidir como utilizá-lo no acasalamento. Outra é vender touro com base na terceira casa depois da vírgula. Ninguém vê essa diferença e é até uma certa leviandade dizer que ela existe. Não se pode forçar a diferença em um processo de comunicação. Ela deve ser construída e instruída, já que nenhum índice oferece segurança para ser usado cegamente. Nenhum deles”, pontua Dias.
Juntando informações
Para resolver o problema, muitos programas de melhoramento que trabalham com Deca passaram a incorporar também o percentil ao valor absoluto de suas DEPs, nos últimos anos. Um deles é o Conexão DeltaGen, que foi criado há 40 anos e tem atualmente 63 fazendas associadas e 78.000 matrizes na base de avaliação. Há três anos, esse programa coloca as avaliações à disposição do associado com as duas informações.
“Temos clientes que falam em Deca, outros em Top 0,1%, outros que querem comprar o destaque do leilão. O perfil da pecuária no Brasil é muito amplo, não podemos desprezar nenhum tipo de comunicação já estabelecida”, afirma Rodrigo Dias, gerente técnico do DeltaGen.
Segundo ele, no programa, também existem animais Deca 1 totalmente diferentes, porque a ponderação do índice favoreceu uma característica acima da outra. “Isso não quer dizer que a avaliação está incorreta. O Deca é mais versátil, enquanto o percentil é mais preciso. Nos dois casos, precisamos entender de que tipo de cliente estamos tratando”.
Com vasta experiência na área, o médico-veterinário Fernando Velloso olha a discussão sobre outra perspectiva: “a avaliação genética é paga pelo produtor e a ele pertence; se existe, deve estar disponível para uso”. Para Velloso, que atua junto ao Promebo, Programa de Melhoramento de Bovinos de Carne da Herd Book Collares, no Rio Grande do Sul, o melhoramento genético não deve ter caixa preta, precisa ser um livro de consulta pública; a reeducação do mercado passa pela transparência”.
Velloso propõe que os programas sinalizem em seus sumários quais são as características passíveis de alteração, seja em função da baixa acurácia ou da oscilação causada pela interação genótipo-ambiente. “Sabemos que algumas características, com poucos dados coletados, podem mudar à medida que a base é ampliada. Por que não divulgá- las com esse aviso ou deixar de publicá-las até que apresentem maior acurácia?”, questiona. Na sua opinião, a Deca exige maior esforço de interpretação por parte do pecuarista, que já tem baixa compreensão de genética. “Mudar a classificação não altera isso, pode apenas sobrecarregá-lo”, diz Velloso.
Revista DBO – Edição 467 – Setembro de 2019
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