Em algumas regiões, garantir água para o rebanho vem exigindo nova atitude dos pecuaristas no cuidado com suas fontes e nascentes. Eles também precisam virar ‘produtores de água’, a exemplo de Epaminondas Andrade, da Fazenda Vale do Boi, TO, que recuperou nascentes e montou um sistema hídrico criativo para burlar a escassez e produzir mais.
Por Renato Villela
A água é a “nova fronteira” da sustentabilidade. Diretamente associada ao bem-estar animal (sede traz sofrimento) e à produção de carne (boi que não bebe não come), a água começa a escassear onde era abundante, colocando a atividade sob risco em vários pontos do País. “Usá-la de forma racional é questão de sobrevivência. Tê-la em abundância e qualidade, um direito dos animais”, diz Mateus Paranhos, coordenador do Etco, Grupo de Estudos e Pesquisa em Etologia e Ecologia Animal, da Unesp/Jaboticabal.
Há forte pressão da sociedade nesse sentido, confirmada por estudos cada vez mais frequentes sobre comportamento animal e “pegada hídrica”, quantidade do recurso que se usa para obter um produto, desde a fazenda até a indústria, incluindo os insumos utilizados.
Nos sistemas fortemente baseados no confinamento de longa duração, como o norte-americano, fala-se em 15.415 litros para 1 kg de carne. Nos de pasto, como o brasileiro, esse número relativo a todo o processo ainda não está disponível, mas estudos iniciais da Embrapa indicam uma “pegada” menor. Independentemente disso, os desafios do setor nessa área são grandes. Muitos pecuaristas ainda não se deram conta, mas, além de produtores de bois, terão de se tornar produtores de água.
Epaminondas de Andrade, respeitado selecionador de Nelore do Tocantins, já é um deles. A “intimação” veio da própria natureza. Quando chegou na região do Bico do Papagaio, há 35 anos, vindo do Triângulo Mineiro, encontrou na Fazenda Vale do Boi, de 1.875 ha, em Carmolândia, a 27 km de Araguaína (TO), um modelo típico de pecuária extensiva: piquetes grandes, com divisões atreladas a pequenos córregos, onde os animais matavam a sede.
Se o pasto não era servido por um riachinho, recorria-se às famigeradas cacimbas, cavando áreas baixas até encontrar um lençol freático superficial ou esperando que a vala se enchesse com água da chuva. Hoje, essa estratégia é condenada, devido à má qualidade da água e ao risco de botulismo, mas, na época, era muito comum. O modelo convencional de dessedentação do gado, contudo, logo mostraria suas fragilidades.
Grande susto
Na década de 90, para progredir na seleção de Nelore, Seu Epaminondas, como é conhecido, decidiu dividir pastagens e levar água até os piquetes não contemplados por cursos naturais. Para isso, usou um poço artesiano, construiu reservatório e alguns bebedouros, instalou encanamentos, mas essa estrutura atendia pequena parte dos pastos. A grande maioria continuava a ser servida por córregos e cacimbas. Foi então que o clima começou a dar suas cartas, complicando a história.
“Há 10 anos, percebemos, que a quantidade de chuvas estava diminuindo e que a seca estava se esticando”, conta o filho, Ricardo José de Andrade, que toca a fazenda junto com o pai e o irmão, Paulo Henrique. O histórico pluviométrico da Vale do Boi, fruto de registros rigorosos feito por Seu Epaminondas desde 1986, comprova isso. A média anual de chuvas diminuiu (veja gráfico) e a estiagem, que antes ia de maio a agosto, passou a se estender até setembro-outubro.
A mudança climática trouxe consequências graves: córregos que nunca secavam nesse período, passaram a secar; nascentes começaram a minguar. Não tardou para que o projeto de intensificação de pastagens fosse ameaçado. “Estávamos com a fazenda melhor dividida, os pastos cortados por córregos, mas não tínhamos mais água”, diz Ricardo. Alguns piquetes foram abandonados no auge da estiagem.
“Não chegamos a misturar lotes, como muitos produtores acabam fazendo, mas a seca dos córregos atrapalhou muito o manejo do gado”, conta. Era fundamental ter abundância hídrica na Vale do Boi, criando um sistema de armazenamento robusto que permitisse trabalhar com folga, mas sem desperdício. Começou aí a história de Seu Epaminondas como “produtor de água”, pilar importante da sustentabilidade na fazenda.
O primeiro passo para enfrentar o problema da escassez hídrica era encontrar novas fontes de abastecimento. A propriedade tem rebanho de 3.000 cabeças, alojadas em 1.300 ha de pastagem. São três retiros, equipados com currais. Dois ficam juntos e o terceiro, adquirido posteriormente, encontra-se do outro lado da rodovia que margeia a propriedade.
O poço artesiano escolhido para dar início à troca das aguadas naturais por bebedouros e atender os dois retiros contíguos produziu menos água do que o esperado. A previsão de 3.500 litros/hora não se concretizou. Tratava-se, na verdade, de um antigo poço, que havia sido perfurado anos atrás pela Prefeitura de Carmolândia, na época em que o município, que faz divisa com a propriedade, buscava alternativas na região para abastecer a população da cidade. A pouca vazão fizera o projeto de poços ser abandonado.
Produzindo água
Que fazer diante disso? Perfurar outros pontos da fazenda não sairia barato nem era garantia de sucesso, devido ao histórico de poços de baixa vazão naquela região. A saída foi encontrar uma forma complementar de produção hídrica. A fazenda possui três minas d`água maiores, uma delas, inclusive, utilizada há 25 anos para abastecer a sede, mas nunca se havia cogitado usá-las para matar a sede dos animais.
“Na época, nem pensávamos em instalar bebedouros na fazenda”, diz Ricardo. O bom funcionamento das minas ao longo dos anos, associado à sua localização privilegiada (700 m acima do poço já existente) despertou a criatividade dos produtores, levando-os a desenhar um modelo inovador de captação hídrica, que alia a produção da nascente com a do poço artesiano.
Antes de descrever esse sistema, entretanto, voltemos às nascentes salvadoras. O cuidado com esses “pontos de descarga” dos aquíferos é fundamental para se ter abundância hídrica na propriedade. É necessário isolá-las, recompor a mata ciliar que as protege (caso tenha sido destruída) e perenizá-las. Seu Epaminondas usou, para isso, um sistema semelhante ao descrito na reportagem “Fartura no campo”, publicada por DBO, em abril de 2015.
A técnica consiste em cavar bem o local, retirando todo tipo de sujeira e barro podre até se identificar os “olhos d`água”. Em seguida, calça-se o buraco com pedras grandes que permitem o percolamento e filtragem da água. Por cima, coloca-se pedras menores e passa-se sobre elas uma camada de solo-cimento. Assim, a nascente fica coberta, evitando-se assoreamento, presença de animais silvestres e acúmulo de matéria orgânica que pode contaminar a água.
Na Vale do Boi, antes da colocar as pedras no buraco, Seu Epaminondas instalou, em sua parede frontal, um cano de PVC de 100 mm, rente ao solo, para limpeza da nascente, procedimento recomendado de tempos em tempos. Basta destapá-lo e esvaziar a água. Um segundo cano, também de 100 mm, foi usado para abastecimento, e um terceiro, do mesmo calibre, foi colocado mais acima, para liberar o excedente de água. Nele, foi instalada uma válvula de retenção, que permite a saída da “sobra” de líquido, mas impede a entrada de pequenos animais.
Toda a área no entorno da nascente da Vale do Boi foi cercada, para impedir o acesso do gado, conforme rege a legislação ambiental. Outra medida importante foi a construção de “lombadas” ou “murundus”, para protegê-la de enxurradas.
Sistema interligado
Com a nascente protegida e estruturada, providenciou-se sua conexão com o poço artesiano. O sistema integrado funciona da seguinte maneira: a água represada e canalizada na mina segue, por gravidade, até uma caixa d’água metálica, com capacidade para 20.000 litros, que servia como antigo reservatório e fica ao lado do poço.
Para aumentar a quantidade de água captada, o mesmo trabalho foi feito em outras duas nascentes próximas, cujos canos de abastecimento também convergem para a caixa, garantindo fluxo intermitente, sem qualquer gasto de energia. “Cada nascente contribui, em média, com 1.000 l/h no auge da seca, o resto vem do poço”, conta Seu Epaminondas. Uma vez que o volume da caixa é preenchido, a água sai por um cano na parte superior e é despejada dentro do poço, livre de sedimentos que se acumulam no fundo do recipiente, cuja limpeza é feita abrindo-se o registro.
O sistema, portanto, se retroalimenta. Do poço, a água é bombeada para dois reservatórios, um de 30.000 e outro de 100.000 litros (ambos localizados na parte alta do terreno), descendo por gravidade para abastecer os bebedouros dos piquetes que compõem os dois retiros contíguos da fazenda.
Nascente já protegida e com encanamento. À dir., Seu Epaminondas e o filho, Ricardo, mostram o poço artesiano e a caixa d’água com bomba, que alimenta o reservatório.
Detalhe importante: além da bomba hidráulica localizada no poço artesiano, há outra de reserva junto à caixa, independente e pronta para bombear a água que vem direto das nascentes, caso haja algum problema com o primeiro equipamento. Trata-se de uma medida de precaução que também está presente na configuração dos reservatórios. “Tudo o que depende de bombeamento uma hora dá problema. Tendo duas bombas, se uma parar, ligamos a outra e garantimos o abastecimento sem interrupções. Tudo é pensado para uma situação de caos”, diz Seu Epaminondas.
A primeira etapa do projeto teve início em 2009, quando foi preciso “dar uma arrancada” em virtude do agravamento da crise hídrica. Naquele ano, construiu-se o reservatório de 100.000 litros e estendeu-se a linha de canos (5 km) até o fundo da fazenda, onde a situação era mais crítica. O produtor instalou seis bebedouros que davam acesso a 12 pastos.
“No ano seguinte a seca foi forte, os córregos novamente secaram, mas não tivemos problema para fornecer água aos animais”, recorda Ricardo. Para os piquetes que ainda não estavam servidos por bebedouros, recorreu-se a uma estratégia de manejo. “Colocávamos o gado mais cedo nessa área, quando ainda havia água nos córregos”, diz. Com o passar dos anos, mais pastos foram sendo estruturados. Hoje, a fazenda conta com 140 piquetes, 116 deles (83%) servidos por água encanada, mas a meta é chegar a 100% nos próximos dois anos.
Distribuição ininterrupta
A exemplo da dobradinha que se viu entre a nascente e o poço artesiano para produzir a quantidade de água necessária ao rebanho, era preciso garantir que a distribuição fosse efetuada de maneira ininterrupta. A solução encontrada foi fazer os dois reservatórios de 30.000 e 100.000 litros operar em sintonia. Dispostos lado a lado, ambos são abastecidos simultaneamente, graças a uma bifurcação em “Y” no encanamento de chegada.
Um registro controla o fluxo, sempre maior no reservatório de 100.000 l, que também recebe água por gravidade do de 30.000 l (mais alto). “Essa engenharia permite aproveitar melhor a bomba e mantém os dois reservatórios sempre cheios”, diz Ricardo.
Para evitar desperdício, foram instaladas duas bóias, uma elétrica que desliga automaticamente a bomba do poço, e outra que controla a passagem de água do reservatório mais alto. “Quando se atinge a capacidade máxima, a bóia fecha, evitando transbordamento”, explica o produtor.
Ricardo chama a atenção para outro detalhe muito interessante. No reservatório de 100.000 l, o cano que leva a água até os bebedouros não fica na base da instalação, rente ao solo. A captação da água é feita por meio de um sifão, cuja altura corresponde a 2/3 da parede interna do reservatório. Em formato de “U” invertido, ele possui pequenos furos na barra superior. Quando o volume de água diminui, o ar entra no cano por esses furinhos e o sistema para automaticamente de funcionar.
“O vaqueiro percebe que os bebedouros não estão sendo abastecidos e verifica o que está acontecendo. Se for algo simples, como travamento da bomba, basta destravá-la e está resolvido. Mas se for um problema que requeira a presença de um técnico, basta abrir um segundo registro, este rente ao solo, e usar a reserva de água, que é de 70.000 litros. Isso nos dá tempo suficiente para resolver a questão”, explica Ricardo. Se o escoamento fosse feito por baixo, caso faltasse água no bebedouro por algum motivo, não haveria água no reservatório, agravando a situação.
Travessia da represa
O mesmo modelo de abastecimento hídrico já descrito foi usado no terceiro retiro da fazenda, do outro lado da rodovia. Quando essa gleba foi comprada, 17 anos atrás, tinha um poço artesiano com capacidade para 6.000 l/hora e um pequeno reservatório situado na parte mais alta. Os pastos eram grandes e, para serem divididos, precisavam de água. Da mesma forma que nos outros retiros, o poço não tinha vazão suficiente.
“Rebaixamos a bomba algumas vezes na tentativa de captar mais água, até o momento em que não deu mais”, conta Seu Epaminondas. Sem nascentes que pudessem fornecer água por gravidade, o jeito era fazer mais poços. “Furávamos, furávamos, mas não encontrávamos nada”, conta ele.
Ao todo, foram feitas 11 tentativas. O insucesso levou a uma situação extrema. “Para garantir o abastecimento do reservatório tivemos de puxar água de caminhão-pipa por dois anos seguidos”, relata o produtor. Não havendo fontes de água de melhor qualidade, Seu Epaminondas decidiu recorrer à represa.
Conjunto de reservatórios da fazenda e a represa que teve de ser transposta pelo encanamento.
Os postes já haviam sido colocados, a energia elétrica ‘puxada’ e os canos comprados para começar o trabalho, quando uma empresa de perfuração encontrou um poço no vizinho e indicou o local por onde provavelmente passava o “veio d`água”. Dito e feito. “Encontramos um poço com água de ótima qualidade e vazão de 30.000 litros/hora”, conta.
O problema parecia, enfim, resolvido, mas a alegria durou pouco. O novo poço ficava do outro lado da represa, oposto ao reservatório, e era preciso levar o encanamento até ele, passando por 150 m de água. Sem a possibilidade de colocar estacas de sustentação ao longo do trecho, devido à grande profundidade da represa (3 m, em alguns pontos), optou-se por usar “âncoras” de concreto, em formato de anéis, que pudessem ser enfiadas no cano, mantendo-o no fundo das águas.
“Para fazer essas âncoras, pegamos baldes plásticos de 20 litros, enchemos com concreto e colocamos um cano de 100 mm no centro para fazer o furo. Após a secagem do cimento, cortamos o balde e retiramos o cano. O resultado são anéis grossos, com furo de tamanho suficiente para passar um cano de 75 mm”, conta Ricardo.
O primeiro passo para se passar o encanamento de um lado para outro da represa foi emendar suas barras e depois levar o material, boiando, até a outra margem, com ajuda de um barco. “Enchemos o cano com um pouco de água apenas para melhorar sua estabilidade”, explica o produtor. A partir daí veio a parte mais trabalhosa: colocar as âncoras. Uma a uma, elas foram enfiadas no cano, por meio de seus orifícios. Para evitar que seu peso não quebrasse a barra de PVC (cada uma tem sua âncora), amarrou-se uma corda em cada anel de concreto e usou-se essa corda para soltar a âncora devagarinho até ela chegar ao fundo da represa.
O cano utilizado por Seu Epaminondas foi o marrom, mais resistente, porém mais flexível do que o azul, normalmente utilizado para encanamentos enterrados. Ele optou por esse tipo de material para evitar que as barras se quebrassem com o arqueamento. A despeito de a empreitada ter sido realizada durante a seca, com a represa, portanto, mais baixa, foi preciso mergulhar em alguns trechos para se certificar de que o cano estava fixado rente ao fundo.
Visão do repórter
No final dos anos 70, Epaminondas de Andrade, um dos principais selecionadores da raça Nelore na região Norte do País, deixou um emprego bem-sucedido na indústria têxtil, onde iniciou a carreira na Indústria Reunidas Fábricas Matarazzo, na capital paulista, para se tornar fazendeiro, primeiro em Uberaba, MG, e depois em Araguaína, TO.
Pioneiro, tornou-se um dos primeiros a aderir ao Programa de Melhoramento Genético de Zebuínos (PMGZ) da ABCZ (Associação Brasileira de Criadores de Zebu), há mais de 30 anos. Teve suas habilidades de gestão reconhecidas pelo Prêmio de Competitividade para Micro e Pequenas Empresas (MPE) do Sebrae, em 2010, que o consagrou como referência em administração rural no País. “Não posso me esquecer de agradecer à indústria. Muita coisa do que fiz devo à atividade industrial”.
No dia que visitei sua propriedade para esta reportagem, duas cenas me chamaram a atenção. A primeira foi quando o vi arrancando obstinadamente as plantas invasoras que tentavam sufocar a grama esmeralda, plantada caprichosamente nas cercanias dos reservatórios de água.
Noutro momento, me surpreendi ao vê-lo, do alto de seus 83 anos, descer do banco de trás da caminhonete e sair em disparada, feito um menino, para abrir a porteira, enquanto eu, sentado na frente, tentava entender os detalhes do sistema de água montado na propriedade.
Quando estamos diante de alguém com uma longa trajetória na atividade, é natural perguntar como é sua relação com a terra, que legado gostaria de deixar, quais conselhos daria para as novas gerações. Tinha todas essas perguntas no meu caderno de anotações. Perderam a importância de tal forma que, se as fiz, não me lembro das respostas. Preferi registrar aqui, a força dessas duas imagens, capazes de retratar a dedicação, a entrega e o entusiasmo que só pertencem àqueles que amam seu ofício.
Revista DBO – Edição 465 – Julho de 2019
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